domingo, 27 de maio de 2012

Poema em Linha Reta

Para iniciar a semana com poesia.
Fernando Pessoa, fez parte da minha juventude, li muitos dos seus poemas, acompanhava com atenção tudo  o que conseguia ter acesso no Brasil dos anos 90. Quem diria que algum dia eu estaria a dizer isso da terra dele. Não pensem que foi fácil, que meus primeiros tempos cá foram um mar de rosas, nem por isso, houve muitos sentimentos confusos, medo, conflitos, saudade. Já escrevi sobre isso aqui no blog, mudar de país não é uma tarefa fácil. Por mais que se esteja vindo para um local que apenas ouvia falar dos livros de história, dos livros de Fernando Pessoa, Eça de Queiróz, Florbela Espanca, Casemiro Cunha. 
Lembrei-me hoje de Poema em Linha Reta, de Fernando Pessoa que neste poema assina com o heterônimo de Álvaro de Campos e deixo-vos o interessante vídeo que é declamado por um actor brasileiro já falecido chamado Paulo Autran que também gostava imenso. Interessante ver Pessoa fazendo uma crítica a sociedade e as pessoas que na sua época (e hoje ainda assim agem)escondiam seus sentimentos, camuflavam e mentiam para si e para o mundo. O poema na íntegra e o vídeo:
Poema em linha reta
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. 


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida... 


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó principes, meus irmãos, 


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo? 


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? 

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. 


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